Durante décadas, o desmantelamento de navios – também chamado de shipbreaking – vem sendo feito em condições precárias, principalmente em praias do Sul da Ásia. Esses locais concentram mais de 70% do desmonte mundial de embarcações, mas a atividade ocorria com baixo controle ambiental e alto risco à saúde dos trabalhadores.
De acordo com dados da ONG Shipbreaking Platform, 409 embarcações comerciais oceânicas foram vendidas para desmonte em 2024, das quais 255 – entre petroleiros, graneleiros, plataformas offshore, cargueiros e navios de passageiros – foram desmanteladas nas praias de Bangladesh, Índia e Paquistão, correspondendo a mais de 80% da arqueação bruta desmontada globalmente. Essas praias são consideradas pontos críticos pelos riscos ambientais e à saúde dos trabalhadores. Vazamentos de óleo, lama contaminada e detritos com metais pesados podem causar graves danos ao meio ambiente costeiro e às comunidades locais que dele dependem[1].
Diante desse cenário, a Organização Marítima Internacional (“IMO”) – agência especializada da ONU responsável pela elaboração de normas internacionais relacionadas à navegação – iniciou, em 2005, um processo de negociação internacional para criar um tratado específico sobre o ciclo final da vida de embarcações. Em maio de 2009, após quatro anos de negociações entre Estados-membros da IMO, representantes da indústria naval e da Organização Internacional do Trabalho (“OIT”), foi adotada em Hong Kong a Convenção Internacional de Hong Kong para a Reciclagem Segura e Ambientalmente Adequada de Navios(“Convenção de Hong Kong”).
A Convenção de Hong Kong estabelece uma abordagem de prevenção de riscos na origem, e não apenas de mitigação ao final da vida útil da embarcação. Isso significa que as obrigações de segurança e controle ambiental começam ainda na construção do navio e se estendem por toda sua vida operacional, culminando na reciclagem controlada. Em razão de seu caráter global e cooperativo, cada país signatário deve estabelecer normas internas que garantam padrões equivalentes de segurança e proteção ao meio ambiente.
Após alcançar o número mínimo de ratificações, a Convenção de Hong Kong finalmente entrou em vigor para seus membros em 26 de junho de 2025. O Brasil, contudo, ainda não é parte da Convenção – apesar de possuir uma frota com mais de 6 mil embarcações vinculadas a Empresas Brasileiras de Navegação (“EBNs”)[2],[3] e quase 100 unidades de produção, incluindo cerca de 68 FPSOs[4]. Nesse contexto, o Projeto de Lei nº 1.584/2021 (“PL 1.584/2021”), atualmente em tramitação no Congresso Nacional, surge como um marco essencial. Se aprovado, preencherá lacunas regulatórias críticas relativas à destinação final e à reciclagem de embarcações e plataformas, alinhando o Brasil às melhores práticas internacionais.
PL 1.584/2021: Tramitação
O PL 1.584/2021 – que institui o marco nacional da reciclagem ambientalmente adequada de embarcações e plataformas, segue em tramitação na Câmara dos Deputados em caráter conclusivo. O texto já foi aprovado pela Comissão de Viação e Transportes (“CVT”) no início deste ano, e atualmente encontra-se sob análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (“CCJC”). Na sequência, deverá seguir para apreciação nas Comissões de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (“CMADS”) e de Relações Exteriores e Defesa Nacional (“CREDN”), para então ser deliberado em plenário e encaminhado à sanção presidencial.
PL 1.584/2021: Contextualização
A iniciativa do PL 1.584/2021 surgiu em um contexto de renovação tecnológica e de descomissionamento crescente no setor marítimo e offshore. Com diversas plataformas de petróleo, FPSOs, FSRUs e embarcações de apoio se aproximando da desativação, impõe-se a necessidade de regras claras para o desmantelamento, destinação e reaproveitamento de materiais, sob critérios de segurança, saúde ocupacional e proteção ambiental. Tal cenário se torna ainda mais desafiador diante de um vácuo normativo quanto à obrigatoriedade de reciclagem das embarcações e plataformas ao final de sua vida útil.
Anteriormente, apenas se exigia a baixa do registro junto à Marinha do Brasil – procedimento de natureza meramente documental.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (“ANP”), pela Resolução ANP nº 817/2020, passou a exigir o Plano de Descomissionamento de Instalações (“PDI”). Contudo, o PDI se restringe à remoção, limpeza e abandono seguro, não incluindo o destino do casco ou o reaproveitamento de materiais. Atualmente, o PDI prevê somente a remoção física da estrutura do mar. Com a aprovação do PL 1.584/2021, o operador terá que planejar a destinação final da unidade em conformidade com as diretrizes e compromissos ambientais definidos na Convenção de Hong Kong (ainda que o Brasil não a tenha ratificado).
Na ausência de norma específica, armadores e operadores podem decidir livremente o destino das embarcações desativadas. Muitas delas são vendidas a sucateiros, exportadas para países asiáticos ou mantidas por anos ancoradas em fundeadouros, aguardando definição sobre seu destino final. Sem uma legislação que obrigue o planejamento do descomissionamento e a reciclagem ambientalmente adequada, essas estruturas acabam se tornando passivos flutuantes, acumulando riscos ambientais, jurídicos e financeiros.
Plano de Reciclagem da Embarcação e o Inventário de Materiais Perigosos
Se aprovado, o PL 1.584/2021 estabelecerá as diretrizes nacionais para a reciclagem segura e ambientalmente adequada de embarcações e plataformas. Durante a operação, as embarcações deverão manter atualizado o Inventário de Materiais Perigosos (“IHM”), documento técnico que identifica e quantifica substâncias como amianto, PCBs (bifenilas policloradas), TBT (tributil-estanho) e outros contaminantes. O IHM será obrigatório para novas construções e embarcações existentes, constituindo requisito para a posterior elaboração do Plano de Reciclagem da Embarcação (“PRE”) e para a emissão do Certificado de Embarcação Pronta para Reciclagem (“CEPR”) pela Marinha do Brasil.
O IHM deverá ser mantido atualizado durante toda a vida útil da embarcação. A cada reforma, substituição de componentes ou modificação estrutural, o operador deverá revisar e registrar as alterações no IHM, garantindo que as informações sobre substâncias perigosas permaneçam precisas. A Marinha do Brasil, na qualidade de Autoridade Marítima, será responsável pela emissão e renovação periódica do Certificado de Inventário, documento que comprova a conformidade da embarcação com a Convenção de Hong Kong.
Além disso, o PL 1.584/2021 estabelece de forma clara que embarcações estrangeiras poderão ser advertidas, detidas, expulsas ou banidas dos portos e terminais offshore sob jurisdição do Estado brasileiro caso não apresentem à Marinha do Brasil uma cópia válida do Certificado de Inventário ou do CEPR.
O PRE passará a ser a condição formal para a destinação ambientalmente adequada da unidade. Logo, não será mais possível (i) manter uma plataforma fundeada por tempo indeterminado, sem plano aprovado; (ii) alegar inviabilidade econômica sem apresentar sua destinação legal; ou (iii) transferir a responsabilidade para terceiros sem que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (“IBAMA”) e a Marinha do Brasil validem o plano. O PRE não se aplicará durante a operação dos navios e plataformas, mas passará a ser obrigatório imediatamente antes do desmonte e da reciclagem.
Atuação do IBAMA e da Marinha do Brasil
Conforme previsto pela Lei Complementar nº 140/2011 e pelo Decreto Federal nº 8.437/2015, a competência pelo controle ambiental nas operações offshore cabe ao IBAMA, que atuará como órgão responsável por analisar e aprovar o PRE. Assim, o IBAMA será responsável por avaliar a viabilidade técnica e ambiental do plano, estabelecercondicionantes, monitorar sua execução e licenciar e fiscalizar os estaleiros onde ocorre o procedimento de reciclagem – em coordenação com a Marinha do Brasil, responsável pela emissão do CEPR.
Quanto ao IHM, este será certificado pela Marinha do Brasil, por meio da Diretoria de Portos e Costas (“DPC”). Na fase final da vida útil da embarcação, o IBAMA atuará de forma complementar, validando o inventário no bojo do processo de licenciamento ambiental e da aprovação do PRE, garantindo que todos os materiais e resíduos listados recebam destinação ambientalmente adequada.
Alterações no planejamento da atividade offshore
De acordo com o PL 1.584/2021, o licenciamento ambiental para exploração e produção offshore permanecerá sob o mesmo regime. No entanto, no momento do descomissionamento das plataformas e embarcações, será obrigatório apresentar o PRE ao IBAMA. Ou seja, o IBAMA continuará atuando como órgão licenciador ambiental, por se tratar de atividade offshore; a Marinha do Brasil será o certificador técnico; e a ANP manterá a coordenação do processo de descomissionamento.
Observa-se que o art. 4º do PL 1.584/2021 abrange navios de sísmica, FPSOs, FSRUs e plataformas fixas rebocadas[5]. Todas essas unidades possuem alto valor de investimento, demandam custos significativos de manutenção e operação, e envolvem estruturas de grande porte e elevada complexidade técnica.

As atividades associadas a essas embarcações e plataformas pressupõem a presença de substâncias potencialmente tóxicas, utilizadas em processos de pintura, isolamento, vedação, lubrificação, conservação e, principalmente, no armazenamento e processamento de petróleo, gás natural, combustíveis, lubrificantes e produtos químicos industriais empregados nas operações offshore.
O Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos (“PGRS”) já prevê a destinação adequada dos resíduos gerados durante a operação. Entretanto, o novo marco trará um avanço importante: todo material perigoso – seja a tinta aplicada ao casco, o óleo utilizado em engrenagens, os materiais de isolamento, os resíduos oleosos de tanques ou os produtos químicos utilizados em processos de produção e separação de óleo e gás – deverá ser identificado, registrado e monitorado por meio do IHM.
Esse inventário se torna, portanto, o instrumento central de rastreabilidade ambiental da embarcação, assegurando que, ao longo de toda a vida útil – desde a operação até a fase de descomissionamento –, seja possível identificar, controlar e rastrear a presença de substâncias nocivas, inclusive os resíduos operacionais e de carga armazenados em tanques, linhas e sistemas de processo.
O PRE é um documento mais abrangente e detalhado, elaborado com base nas informações do IHM e apresentado no final da vida útil da embarcação. Ele não se limitará ao controle de substâncias perigosas, mas abrangerá toda a estrutura física e funcional da unidade, definindo como cada parte será desmontada, segregada, limpa, tratada e destinada — desde o casco metálico até cabos elétricos, tubulações, tanques de armazenamento, módulos habitacionais e sistemas internos.
Embora o PL 1.584/2021 não cite nominalmente cada resolução do Comitê de Proteção do Meio Ambiente Marinho (“MEPC”) da IMO, ele torna obrigatória a observância das diretrizes da IMO como padrão técnico mínimo para a reciclagem naval no Brasil. Isso significa, a nosso ver, que os procedimentos previstos nas resoluções MEPC.210(63) (estrutura do plano de reciclagem) e MEPC.222(64) (vistoria, limpeza e inertização prévia) passarão a ser aplicados de forma vinculante pelo IBAMA e pela Marinha do Brasil, na aprovação do PRE e na emissão do CEPR.

Dessa forma, o PRE deverá, ainda, indicar os procedimentos de limpeza e inertização dos tanques e linhas de processo, garantindo que nenhum resíduo de óleo, gás ou produto químico permaneça a bordo antes do início das atividades de desmonte. Assim, o novo marco busca consolidar um modelo de rastreabilidade completa do ciclo de vida das embarcações, que se estende identificação preventiva no IHM à execução segura e certificada do PRE, integrando as etapas de operação, desativação e destinação final.
Com base nessas informações, será possível garantir que antes do desmonte a unidade esteja totalmente descontaminada, com a remoção de óleos, gases comprimidos, borras e demais produtos remanescentes – condição indispensável para uma reciclagem ambientalmente adequada e segura.
Novos custos e planejamento para a atividade de E&P
Apesar do grande avanço ambiental, as operações de petróleo e gás terão um incremento de custo a ser considerado no planejamento das atividades. O Brasil detém o recorde mundial de operações em águas profundas[6], abrangendo uma ampla faixa de profundidades, o que exige o desenvolvimento contínuo de tecnologia e capacitação de recursos humanos para o descomissionamento de estruturas.
Nos últimos anos, diversas unidades de produção foram desativadas e submetidas a processos de descomissionamento. Estudos recentes indicam que os custos estimados dessas atividades aumentaram substancialmente. A ANP prevê um total de R$ 67,47 bilhões em investimentos com o descomissionamento de 782 poços offshore entre 2025 e 2029, no Brasil[7].

Painel Dinâmico da ANP – Descomissionamento de Instalações de Exploração e Produção
Com o PL 1.584/2021, além das exigências técnicas relacionadas ao desmonte e reciclagem, os materiais resultantes dessas operações – metálicos, elétricos, químicos e estruturais – deverão ser transportados, tratados e destinados de forma rastreável.
Antecipando o impacto financeiro desse novo modelo, o PL 1.584/2021 prevê também a adoção de instrumentos econômicos e medidas de apoio, incluindo linhas de financiamento, políticas de fomento e concessão de incentivos creditícios voltados ao atendimento das diretrizes da lei[8]. Esses mecanismos têm por objetivo viabilizar a transição regulatória e operacional do setor, estimulando investimentos em infraestrutura de reciclagem certificada, tecnologias de descontaminação e transporte seguro de resíduos, além de promover a reindustrialização verde por meio do reaproveitamento dos materiais oriundos das embarcações desmontadas. Em síntese, o PL 1.584/2021 pretende transformar o descomissionamento em um instrumento de sustentabilidade, inovação e política industrial, posicionando o Brasil entre os países comprometidos com a gestão ambiental do ciclo de vida das embarcações. O projeto também representa um avanço regulatório relevante, ao integrar as competências de órgãos como ANP, IBAMA e Marinha do Brasil em um modelo coordenado de governança ambiental. Com sua aprovação, o país tende a se aproximar dos padrões internacionais da Convenção de Hong Kong, fortalecendo sua posição no cenário global da navegação, energia e sustentabilidade.
[1] Disponível em https://www.theguardian.com/global-development/2021/mar/11/bangladesh-shipbreakers-win-right-to-sue-uk-owners-in-landmark-ruling e https://www.offthebeach.org/.
[2] Disponível em https://www.gov.br/antaq/pt-br/noticias/2023/numero-de-ebns-e-instalacoes-portuarias-outorgadas-cresce-em-2022.
[3] EBNs são empresas autorizadas pela Agência Nacional de Transporte Aquaviário – ANTAQ a operar nas navegações de apoio marítimo, apoio portuário, cabotagem, longo curso e de interior. Notamos que determinadas operações não necessitam de participação de EBN, por estarem fora do escopo de regulação da ANTAQ. É o caso, por exemplo, da operação de FPSOs.
[4] Disponível em https://www.bnamericas.com/en/features/snapshot-brazils-floating-production-storage-and-offloading-units e https://cbie.com.br/quantas-plataformas-de-petroleo-temos-no-brasil/.
[5] Art. 4º Omissis
V – embarcação: qualquer construção, incluindo as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita a inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas;
[6] Disponível em https://www.woodmac.com/news/opinion/global-deepwater-production-to-increase-60/.
[7] Disponível em https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiZjFlMWI0MDgtNWNiNC00OTZlLWI3NGQtOGM3MjQwODhjMTMwIiwidCI6IjQ0OTlmNGZmLTI0YTYtNGI0Mi1iN2VmLTEyNGFmY2FkYzkxMyJ9.
[8] Art. 18. No fomento ou na concessão de incentivos creditícios destinados a atender às diretrizes desta Lei, as instituições oficiais de crédito podem estabelecer critérios diferenciados de acesso dos beneficiários aos créditos do Sistema Financeiro Nacional para investimentos produtivos.
Art. 19. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão instituir normas com o objetivo de conceder incentivos fiscais, financeiros ou creditícios, respeitadas as limitações da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, às: […]